Wagner sobre começos: Retórica, forma e audiovisualidade

  

 

Wagner sobre começos: Retórica, forma e audiovisualidade[1]

 

 

Marcus Mota

Universidade de Brasília

 

 

 

Contexto

 

O músico com uma biblioteca: após pobreza em Paris, entre 1839 e 1842, Wagner passa um período estável em Dresden, o que o leva, entre outros afazeres, a constituir uma considerável biblioteca. Até fugir de Dresden em 1849, Wagner amplia o escopo de seus interesses adquirindo publicações em filologia, filosofia, história e literatura. Nenhum dos 400 volumes dessa biblioteca é de música. E é desses volumes que foram desenvolvidos os libretos e música das obras do período maduro de Wagner[2].

Interessante ao ver o catálogo dessa biblioteca é notar que ampliam interesses já presentes no período em Paris, como uma reforma da ópera a partir do estudo de imaginários medievais e greco-latinos.

Entre os textos relevantes para a conexão Paris-Dresden está o “De l'Ouverture”, publicado no Gazette et revue musicale in 1841. No longo texto, Wagner se debruça a estudar e teorizar sobre seções instrumentais que funcionam como o primeiro contato entre audiência e uma obra. Para fundamentar suas ideias. Wagner parte de questões de seu tempo e de procedimentos do teatro, da música e da ópera. Ou seja, ele indica o horizonte interartístico dos inícios, de como se propor e estabelecer uma relação com a audiência.

Problematizar a abertura em seu amplo escopo parece fundamental para Wagner, nesse momento de isolamento em Paris. O refúgio em uma escrita exploratória, na qual convergem estudos e críticas de sua tradição criativa e possibilidades para obras que ele mesmo irá realizar, faz com a reflexão em “De l'Ouverture” se torne mais um momento na longa história de compreensão de eventos performativos multissensoriais.  Um exame detalhado do ensaio no faculta subsídios a essa historicidade avessa a normalizações.

 

O ensaio e sua análise

Wagner inicia seu texto invocando o exemplo da dramaturgia antiga: “Outrora as peças de teatro eram precedidas de prólogos (WAGNER, 2015, p. 39)”. O recurso ao precedente histórico, especialmente ao legado grego, terá fundamental papel na trilogia de ensaios após o momento revolucionário de Dresden: “Die Kunst und die Revolution (1849), Das Kunstwerk der Zukunft (1849) e a Oper und Drama (1852).

Além dos textos dramáticos restantes de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, Wagner vale-se das indicações aristotélicas, para definir o que é prólogo: na Poética 1452b 20, lemos “prólogo, que é uma parte completa da tragédia e que precede a entrada do coro”[3].  Ou seja, para o fim do século IV a.C, já havia um nome técnico para identificar as partes ou seções de uma dramaturgia complexa, que entremeava canto, dança, música e palavra.

Na escola aristotélica o reconhecimento da produtividade formal de uma seção de abertura de contato entre performer(s) e audiência é ampliado, incluindo música, retórica e poesia em performance: no livro 3 da Retórica lemos:

 

O prooímión é a arché do lógos. O que lhe corresponde em poesia é o prólogo; na aulética, o prelúdio. São outros tantos começos que, por assim dizer, abrem o caminho ao que vai seguir. O prelúdio é semelhante ao prooímíon no gênero epidíctico. Com efeito, os tocadores de flauta, quando conhecem alguma ária, ensaiam-na preludiando no início da música que dá o tom[4]. Eis qual deve ser a composição nos discursos demonstrativos: começa-se por exprimir o que se pretende dizer e apresenta-se o plano. Todos os oradores conformaram-se com esta regra. [5] Para os proêmios do gênero judiciário (tà dè toû dikanikoû prooímia), deve partir-se do princípio que eles desempenham o mesmo papel que os prólogos (prólogoi) das peças teatrais (dramáton) e os proêmios dos poemas épicos (tôn epôn tà prooímia) (NETO, 2014, p.167)[5].

 

O termo prooímión é o arquétipo das “formas de início”: segundo a interpretação de Gregory Nagy:

 

“Uma forma arquetípica do prooímion é executada pelo deus Apolo no Hino Homérico a Hermes 502: Apolo primeiro tocou a lira e depois ὑπὸ καλὸν ἄεισεν 'ele cantou lindamente, em acompanhamento [hupo-]'. Nesse contexto, prooímion pode ser traduzido aproximadamente como “prelúdio”, mas prefiro usar aqui o empréstimo latino mais neutro, “prooemium”. O prooímion é uma estrutura para o canto virtuoso diferenciado por um intérprete individual conhecido na era clássica de Atenas como kitharōidós 'cantor de lira [kithárā]'. O substantivo pro-oímion significa, literalmente, “a primeira parte da música [oímē]”, assim como o substantivo pró-nāos significa “a primeira parte do templo [nāós]”. Assim como o prónāos não é um templo em frente a um templo, mas sim uma parte orgânica do próprio templo, assim também o prooímion, se considerarmos sua etimologia, não é uma música que é cantada antes de outra música, mas sim uma parte orgânica da própria música. Vejo aqui um fato importantíssimo que se mostra essencial para a compreensão do significado básico de prooímion (NAGY, 2021. Grifos nossos)”.

 

Assim, a divindade flagrada em sua composição em performance, manifesta um fluxo de percepções múltiplas, cujo recorte inicial é designado como “proêmio”. Estabelece-se, pois, um duplo e simultâneo conjunto de referências: a possibilidade de se distinguir uma parte ou sessão dentro de um fluxo e esse fluxo mesmo ser composto de partes e/ou sessões integradas.

É digno de nota que o arquétipo mítico lida com uma figura além do horizonte comum da experiência humana que se define pelas ações de correlacionar diversas habilidades e percepções ao mesmo tempo, como cantar e tocar um instrumento musical. Essa pluralidade de ações diversas por um meio agente efetiva majoritariamente coisas de se ouvir. Assim, há uma trama que aproxima o fluxo multissensorial e sua dominância aural. O que quer se se compreenda como prooímion relaciona-se a este contexto multidimensional e ao mesmo tempo hipersônico: há muitas coisas acontecendo conjuntamente e há uma superabundância de som.

Após iniciar suas ideias sobre a abertura de obras performativas partindo da dramaturgia antiga, Wagner parte para o que mais lhe concerne: a abertura em obras dramático-musicais: “Quando se começou a apresentar dramas em música, dever-se ia, para permanecer fiel à moda, fazê-los preceder de prólogos mesclados de canto. Introduziu-se em seu lugar a abertura, trecho de música confiado só à orquestra, e que devia preceder a execução do verdadeiro drama. A maneira como foram concebidas essas primeiras introduções instrumentais leva a crer que os primeiros compositores não tinham absolutamente a intenção de satisfazer todas as condições do antigo prólogo (WAGNER, 2015, p. 39-40. Grifos nossos).”

O alvo crítico de Wagner é justamente a contraposição entre a idealidade do prólogo como uma forma dramático-musical no teatro grego antigo e a heterogeneidade das aberturas musicais na ópera. Ou seja, na recepção da dramaturgia antiga, houve a identificação de um procedimento de inicialização do espetáculo e sua reproposição. Quem trabalha na recepção de formas antigas move-se na fronteira entre tempos diversos. Assim, parte-se da compreensão do que seria tal procedimento no passado e como se daria sua realização no presente. O ponto de partida é como um “drama em música” foi articulado e como será efetivado hoje. Para Wagner, houve uma significativa mudança de como os inícios de dramas musicais eram compostos no passado e como eles passaram a ser realizados em sua recepção: houve a passagem de seções iniciais com canto vocal para seções puramente instrumentais.

 

Interlúdio: o caso Scheibe

O compositor e crítico da música Johann Adolf Scheibe (1708-1776) desenvolveu suas observações sobre as relações entre teatro e música em um momento quando, por impulso do crítico Johann Christoph Gottsched (1700-1766), a imitação dos modelos clássicos, especialmente os filtrados pelo classicismo francês, tornou-se a diretriz na produção cultural germânica.  O próprio Scheibe escreve sobre isso, no texto “Propósitos do Músico Crítico e declaração das circunstâncias em que a música tem sido encontrada até os dias atuais”, publicado em 5 de março de 1737 em seu diário crítico Der Critische Musikus, que circulou entre 1737 e 1740 nos círculos intelectuais de Leipzig:

“Por fim, o barbarismo que prevalecia nas ciências foi quase completamente erradicado em algumas partes de nossa Alemanha Vemos a poesia e a oratória tão aperfeiçoadas graças às melhores pesquisas críticas que não podemos mais ceder nada a aos franceses, que de outra forma queriam ser os únicos mestres nisso. O bom gosto começa a prevalecer e, assim, começamos a perceber como são afortunados  aqueles que seguem a razão e a natureza em um poder de julgamento bem testado.

Resta apenas a música. Essa nobre ciência ainda precisa de todos os esforços que foram aplicados naqueles dias. Ela ainda se encontra em uma confusão tão grande que ainda custará a nós e aos nossos descendentes tempo e esforço suficientes para colocá-la em uma ordem mais razoável. Até agora, temos sido ajudados principalmente por imitações. A compreensão, como se pode imaginar, foi totalmente negligenciada e não tem mais valor do que o de um ouvido ruim. Estamos satisfeitos com uma garganta italiana que nos cante uma infinidade de trinados, vibratos, saltos e outras chamadas extensões artificiais de sílabas, tornadas ainda mais incompreensíveis, se necessário, por meio de um acompanhamento instrumental ligeiro (SCHEIBE, 1745, p. 4-5).” 

Esse projeto de aproximar erudição literária e composição musical parte da insatisfação de Scheibe com as práticas artísticas de se tempo e de soluções que ele encontra fora do campo puramente musical.

No que interessa para as considerações deste artigo, Scheibe dedica-se a estudar em detalhe as “sinfonias”, que, entre outras coisas, designam no seu tempo peças instrumentais que integravam óperas, sonatas e concertos. Ou seja, eram peças instrumentais dentro de obras de maior extensão. Scheibe, a partir de observações de produções de imitações da dramaturgia grega antiga, procura discutir as correlações entre cena e música novamente em seu diário crítico:

“ O segundo gênero de sinfonias teatrais pertence, na verdade, às tragédias e comédias comuns. Enquanto isso, ninguém deve se surpreender por eu considerar uma boa ideia examinar essas sinfonias em particular. Talvez poucos ainda tenham percebido que é necessário produzir sinfonias confortáveis e bem preparadas para as tragédias e comédias comuns. Talvez eu não possa me gabar injustamente de ter sido o primeiro a pensar sobre esse assunto de forma mais completa do que qualquer outra pessoa poderia ter feito; especialmente porque já o coloquei em prática por meio de alguns ensaios públicos. Portanto, tenho todo o direito de expor meus pensamentos sobre o assunto nestas minhas páginas e, ao mesmo tempo, observar o que se deve prestar atenção especial ao prepará-las (SCHEIBE, 1745, p. 611).”

Neste preâmbulo, escrito em 8 de dezembro de 1839, Scheibe procura enfatizar a originalidade de seu pensamento vinculado a uma prática correlata, como se fosse um trabalho de cientista. Ele chama atenção para algo bem específico – sinfonia ou seções instrumentais em obras dramáticas.

O primeiro experimento dramático-musical de Scheibe é Artaban, de 1738, na forma de um “Singspiel” – presença de texto falado junto de partes cantadas. Elaborada para coro e orquestra, possuía três atos. Só nos resta o libreto. Mas foram as composições para Mitrídates, de Racine e Polieucto, de Corneille, elaboradas também em 1738 em Hamburgo, que foram o material para a investigação de Scheibe[6]

A intensidade das experiências criativas o levou a escrever:

 “Como eu havia sentido uma grande falta e uma não pequena desordem em relação à música entre as peças durante minhas visitas frequentes a esse teatro por vários anos; como não se fazia a menor diferença em peças fúnebres, bem como em peças de alegria ou prazer, não se importava com o conteúdo das palavras nem com o caráter das pessoas e, além disso, duetos, sinfonias e todos os tipos de peças avulsas eram ouvidos em todas as peças sem distinção: Isso me deu a oportunidade de refletir sobre essas falhas e pensar em um meio suficiente para dar à beleza das peças uma aparência melhor por meio de música apropriada e ordenada, elevando-as ainda mais e, assim, banindo completamente a desordem que havia se instalado e o ridículo que até então estava presente nas peças. Mas depois que percebi facilmente que, de acordo com a variedade das peças, também a música para elas teria de ser diferente e que, portanto, cada peça exigia seu próprio e especial acompanhamento musical entre os atos ou ações, também percebi facilmente que a desordem não poderia ser remediada de outra forma que não fosse criando uma música separada para cada peça e, de fato, sinfonias adequadas que correspondessem exatamente à mesma peça. E assim, gradualmente, também me deparei com algumas regras e vantagens que pertencem a ela, que devem ser aplicadas a essas sinfonias, para que sejam razoáveis e regulares. E assim, finalmente, formei noções sobre isso, pois estava convencido de que, com relação às regras do teatro, elas realmente tinham de ser, caso se esperasse alcançar o objetivo final desejado, ou seja, a melhoria da música nas peças (SCHEIBE,1745, p.612-613)”

 

O problema colocado Scheibe, de se compor música específica para uma dramaturgia específica. Isso se refere não apenas ao pathos, à marcação emocional de uma cena. Há questões estruturais, de costura entre as seções: “Portanto, a sinfonia de abertura deve se referir à primeira aparição da peça, mas as sinfonias que ocorrem entre os atos devem coincidir parcialmente com o fim do ato anterior, mas parcialmente com o início do ato seguinte; a última sinfonia, no entanto, deve corresponder ao fim do último ato. Assim, pode-se ver que um compositor deve considerar as peças em geral e em particular ao redigir e elaborar suas sinfonias; e que, além disso, tanto a abertura quanto as sinfonias intermediárias exigem suas próprias regras (SCHEIBE,1745, p.614.”

Scheibe se opõe a opções se valem da adição de sons prévios (canções, números instrumentais), para se dizer que há algo que soem como música na cena. Há uma noção estrutural aqui: a composição musical precisa estabelecer algum link com aquilo que é mostrado pelos atores/cantores. Aquilo que se ouve necessita ser ancorada no que se vê, como uma interpretação sonora de um acontecimento visual. O diferencial da abertura é interpretar em sons aquilo que será apresentado pela primeira vez para os espectadores.

Essa “reforma da música incidental” foi catapultada para além de questão de composição musical quando o dramaturgo G. Lessing (1729-1781) em seção de sua Dramaturgia de Hamburgo retoma as ideias de Scheibe em 28/07/1767:

“Como a orquestra em nossos dramas preenche, em certa medida, o lugar dos coros antigos, os especialistas há muito desejam que a música tocada antes e entre os atos esteja mais de acordo com a substância desses atos. O Sr. Scheibe é o primeiro entre os músicos a perceber um campo totalmente novo para a arte nesta matéria. Ele entendeu que, para que as emoções dos espectadores não sejam enfraquecidas ou interrompidas de maneira desagradável, todo drama precisa ter seu próprio acompanhamento musical. Portanto, ele não só fez uma tentativa já em 1738, com  Polieucto  e Mitrídates, de compor sinfonias adequadas para cada peça, e estas foram apresentadas na companhia de Neuberin, tanto aqui em Hamburgo, quanto em Leipzig e outros lugares, mas também expôs em detalhes em um periódico especial, o Der Critische Musikus, o que o compositor deve observar principalmente se deseja trabalhar com sucesso neste novo gênero (LESSING, 1767, 1, 205. Grifos nossos)”.

 

Wagner novamente

Desse modo, havia sido explicitado no contexto germânico, que a recepção da dramaturgia ateniense antiga poderia ser a oportunidade para se promover experiências interartísticas e construção de teorias, abordagens, argumentos estéticos. O desdobramento de Scheibe entre compositor e teórico demonstra a amplitude e complexidade da questão, que seria depois retomada na reforma da ópera proposta do C.Gluck (1714 -1787) e depois nas propostas reformista de Wagner.  Comum a Scheibe, Gluck e Wagner é a construção de uma modificação das práticas vigentes articulando:

a- crítica de modelos nacionais de dramaturgia musical, como os italianos e francês;

b- retorno/atualização da conceitos e práticas da dramaturgia ateniense antiga;

c- integração entre questões estéticas, atividades criativas e conceitos filosóficos.

 

Pouco a pouco, no trânsito de Scheibe a Wagner, a reforma da ópera é a reforma da sociedade, da Europa, do mundo. Nesse ponto, encontram-se pelo menos duas racionalidades: uma que procura pensar o que são obras que realizam convergências e divergências entre diversos processos perceptivos; e a outra é da própria racionalidade diante do desafio de propor a sua efetividade.  Em outras palavras: 1- como pensar isso que é um fluxo de imagens, sons, palavras, movimentos 2- como construir formas de se articular esse fluxo em um conjunto integrado de atos de análise, descrição, identificação de elementos e padrões sobre os quais se pode falar, comentar, discorrer.

É dessa dupla instância que pensar  “começos” melhor se compreendem,  do ponto de vista de uma experiência multidimensional que desafia o exercício do pensamento.   Como vimos, Aristóteles vê nos “começos” algum comum entre diversas atividades performativas (música, poesia oral e arte dos discursos). Nas três temos um fluxo de interações entre agentes em situação de performance. O fato de haver uma designação para marcar a fase de inicialização desse fluxo nos informa e muito sobre como este fluxo se efetiva. Mais que um ponto em uma reta, o fluxo precisa ser iniciado e passar por uma fase onde se identifica o que está acontecendo e quem dele participa. Se o fluxo é a interação entre seus partícipes, essa interação é disparada, iniciada, no tempo de sua efetivação como interação, na qual os partícipes se reconhecem como integrados ao fluxo. Se o fluxo é a interação dos partícipes, os partícipes se reconhecem integrados ao fluxo quando agem como o fluxo, quando interagem, quando são algo a partir do fluxo.  O começo do fluxo é experiência mesma do fluxo que os partícipes realizam. Pois ao se integrarem ao fluxo, essa participação demanda atos de transformação de seus agentes, para que se tornem acontecimentos da interação, para que ajam como fluxo.

Dessa forma, o começo não é algo que localizado no momento de sua ocorrência: se o começo é o tempo do início do fluxo, da interação entre os partícipes e o fluxo é a continuidade dessa interação, o começo começa e se transpõe para além do momento de sua ocorrência. O começo já é fluxo. O começo é o acontecer da interação, é a experiência da interação em seu tempo de efetivação.

Scheibe percebe que para obras interartísticas, multissensoriais, o começo não é algo preso a seu pressuposto isolamento em uma temporalidade linear. Para tanto ele propõe e experimenta que as secções iniciais instrumentais (sinfonia) dialogue com a cena imediata. Ou seja, que os sons no tempo de sua performance atualizem o inatual, o que ainda vai acontecer, mas que já está sonoramente disparado e perceptível. O que o som nos pode fazer experimentar ao unir atualidades que pertencem a tempos diversos? No lugar de uma composição autocontida, autorreferida, os sons de agora nos remetem a outros acontecimentos, cuja alteridade consiste tanto de não ser algo sonoro, ser um outro do som, quanto não ser o que foi aqui performado. A sinfonia de abertura é começo de outra maneira de correlacionar tempo e espaço por meio do som. O agora é o entretempo do aqui vinculado ao não-aqui. Essa composição musical de agora não apenas antecipa o futuro: ela estende o tempo para além de sua imediaticidade.

Daí o problema de se começar obras multissensoriais se tornar um grande desafio para a arte e para o pensamento. Gluck seguiu o caminho aberto por Scheibe, e Beethoven, segundo Wagner, ampliou as possibilidades da abertura: a abertura instrumental não apenas projeta a cena inicial e sim o drama inteiro. É o que Wagner afirma novamente em seu ensaio:

Bem longe de ver reduzir-se a uma simples introdução musical pelo drama, ele, ao contrário, antecipou-se ao drama na abertura e desenvolveu-o de antemão segundo suas inspirações criadora. Essa composição gigantesca já não pode chamar-se de abertura: “é o próprio drama em sua mais elevada expressão (WAGNER, 2015, p.45).[7]

Assim, ao promover a larga e complexa imersão que um acontecimento multissensorial produzir, a abertura agora é a experiência totalizante que se perfaz não mais como algo restrito ao seu momento de ocorrência nem à cena imediata. Essa exponenciação da abertura, da abertura como obra, como total imersão, é contraposta por Wagner à “abertura pot-pourri”, ou uma composição instrumental musical no início do espetáculo que é elaborada na recolha e colagem de trechos que serão ouvidos durante a obra. Segundo Wagner, esse tipo de abertura, “evolui necessariamente para a decadência” pois “não se trata mais tratava mais de criar um novo quadro existindo por si mesmo e em virtude de um encadeamento de ideias independentes, mas se remediou isso despedaçando-se as imagens isoladas da ópera, menos por causa de sua importância do que por causa de sua magnificência, e alinhando-as uma do lado da outra (WAGNER, 2015, p.46)”

Wagner aqui se vale de referência a outra arte - a pintura.  A abertura-totalidade ou a abertura-obra é um fluxo integrativo, a relação entre as partes se estabelece rumo a cada uma experiência de amplitude, como é a tela em sua inteireza. Já a abertura pot-pourri promove a identidade das sucessões das partes, dos pedaços, das imagens da tela. Como é difícil articular um fluxo interativo, tanto em sua composição, realização, recepção e produção, quanto em sua compreensão intelectual...

 

Projeções

No isolamento de Paris entre 1839 e 1842, Wagner encontrou na escrita ensaística um território para explorar conceitos e procedimentos ligados a processos criativos interartísticos.  Pensar a composição musical que abre uma obra dramático-musical passa ser a busca por novas formas, liberdade de expressão e movimento a partir recepção de formas e temas da Antiguidade clássica e sua reelaboração nas tradições nacionais europeias. Pensar os inícios passa a ser pensar o próprio processo criativo.

Posteriormente à discussão em torno de “De l'Ouverture”, Wagner passou a se valer de referência à dança para traduzir sua compreensão de como a coesão de uma composição instrumental opera[8].  A abstração dos sons organizados se conjuga à coreografia dos passos.  O contraste, alternância e interação de temas manifesta a lógica processual de base que fundamenta eventos performativos. Desde já “inícios” são ocasiões míticas para se manifestar processos que são mais que soma de suas partes ou a reunião de seus partícipes.

 

 

 

Referências

 

GREY, Thomas. Wagner, the Ouverture, and the Aesthetics of Musical Form. 19th Century Music 12. 1, p.3–22, 1988.

LESSING, Gotthold. Hamburgische Dramaturgie. Bd. 1. Cramer, Hamburg und Bremen,1767. Link: http://www.zeno.org/Literatur/M/Lessing,+Gotthold+Ephraim/%C3%84sthetische+Schriften/Hamburgische+Dramaturgie 

MOORTELE, Steven. The Romantic Overture and Musical Form from Rossini to Wagner. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

MOTA, Marcus. Wagner, o dramaturgo musical do Futuro. São Paulo: Giostri, 2024.

NAGY, Gregory. On the etymology of προοίμιον (prooímion). Classical Continuum, 2021. https://continuum.fas.harvard.edu/on-the-etymology-of-prooimion/

NETO, Nelson. Uma leitura do prólogo do Sofista de Platão. Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v.5,  p. 165-176,2014. Link: https://seminarioppglm.wordpress.com/wp-content/uploads/2015/02/00_revista-do-seminc3a1rio-dos-alunos-do-ppglm-ufrj-20141.pdf.

SCHEIBE, Johann. Der critische Musicus. Neue, vermehrte und verbesserte Auflage von Leipzig: Breitkopf, 1745.

WAGNER, Richard. Uma visita a Beethoven e outros escritos. Org. e Trad. Plínio Augusto Coêlho.  São Paulo: Intermezzo Editorial/Editora Imaginário, 2015.

WESTERNHAGEN, Curt. Richard Wagners Dresdener Bibliothek 1842-1849. Wiesbaden: Brockhaus, 1966.

 

 

 



[1] Texto integrante da pesquisa Wagnerianas: Metodologia integrada de Dramaturgia, Orquestração e Mediação Tecnológica a partir das propostas de Richard Wagner e sua recepção da ideia de Coro do Teatro Grego  Antigo”, financiada pelo Edital CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021.

[2] V. MOTA, 2024. Sobre a biblioteca de Wagner em Dresden, v. WESTERNHAGEN,1966.

[4] Ou “ assim como os auletas começam tocando o que quer que eles possam executar habilmente ( εὖ ἔχωσιν ) e ligam isso à nota de referência ( συνῆψαν τῷ ἐνδοσίμῳ)”.

[5] [1]τὸ μὲν οὖν προοίμιόν ἐστιν ἀρχὴ λόγου, ὅπερ ἐν ποιήσει πρόλογος καὶ ἐν αὐλήσει προαύλιον: πάντα γὰρ ἀρχ αὶ ταῦτ᾽ εἰσί, καὶ οἷον ὁδοποίησις τῷ ἐπιόντι. τὸ μὲνοὖν προαύλιον ὅμοιον τῷ τῶν ἐπιδεικτικῶν προοιμίῳ: καὶ γὰ ρ οἱ αὐληταί, ὅ τι ἂν εὖ ἔχωσιν αὐλῆσαι, τοῦτοπροαυλήσαντες συνῆψαν τῷ ἐνδοσίμῳ, καὶ ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς λ όγοις δεῖ οὕτως γράφειν, ὅ τι γὰρ ἂν βούληται εὐθὺ εἰπόντα ἐνδοῦναι καὶ συνάψαι, ὅπερ πάντες ποιοῦσιν.[5]τὰ δ ὲ τοῦ δικανικοῦ προοίμια δεῖ λαβεῖν ὅτι ταὐτὸ δύναται ὅπερ τῶν δραμάτων οἱ πρόλογοι καὶ τῶν ἐπῶν τὰ προοίμια.

 

[6] Para o catálogo das obras de Scheibe, v. https://www.kb.dk/dcm/schw/preface.xq

[7] SCHEIBE havia indicado essa possibilidade: “Ela (sinfonia de abertura) Portanto, ela deve se relacionar com toda a peça em geral, mas, ao mesmo tempo, também deve preparar o início da mesma e, consequentemente, coincidir com a primeira apresentação (SCHEIBE, 1745, p. 616”

[8] V. GREY, 1988, p. 8. V. ainda V. MORTELLE, 2017.




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