Decisões artísticas - Atualizado
Título Provisório do Projeto Artístico
Quando o Corpo é a Cidade e a Voz é o Gesto
Definições do que pretende realizar
No âmbito etimológico da Vox latina, o primeiro significado de vocare é chamar, invocar. Ainda antes de se fazer palavra, a voz é uma invocação dirigida ao outro e confiante num ouvido que a acolhe. A sua cena inaugural coincide com o nascimento. Aqui o infante, com seu respiro inicial, invoca uma voz em resposta, chama um ouvido para acolher seu grito, convoca outra voz. A ligação intrauterina - que já era rítmica, musical - é quebrada. O primeiro vagido invoca então novo liame sonoro: vitalmente decisivo como a respiração que o sustenta. (...) A voz é sempre para o ouvido, é sempre relacional; mas nunca o é de modo peremptório como no vagido do infante: vida invocativa que se entrega inconscientemente a uma voz que responda. (...) Essa ligação instaura a comunicação primária de qualquer comunicável e por isso constitui um pré-requisito. Ainda não há nada a comunicar, salvo a comunicação mesma em sua pura vocalidade. Acima de tudo, a voz significa, ela mesma, nada além de um vocálico relacional que já está implícito, como invocação, no vagido inaugural. (Cavarero, 2011, p.199)
A partir dessa perspectiva relacional da voz, anterior à palavra, fundada na escuta e na alteridade, é possível compreender como as transformações sociais e tecnológicas a partir do século XIX impactaram não só a linguagem, mas também o modo como nos relacionamos com a própria vocalidade.
O século XIX e, com mais intensidade, ao longo do século XX, corpo e voz passam a ser compreendidos de maneira indissociável. Esse período é marcado por profundas transformações sociais e estéticas, impulsionadas pelas invenções tecnológicas, pela aceleração do tempo urbano e pela consolidação da indústria. Há uma mudança sensível na linguagem, não apenas na forma como se escreve ou se fala, mas na própria percepção do que comunicar. A voz, atravessada por essas forças, torna-se também território de experimentação e resistência, refletindo os choques e os ritmos de uma nova era.
Nesse percurso, os experimentos vocais que emergem entre o final do século XIX e o início do século XXI, atravessando movimentos como o futurismo e o dadaísmo, e desdobrando-se nas práticas da poesia sonora, reposicionam a voz como matéria performática em si. O futurismo, ao exaltar máquinas, a velocidade e os ruídos da modernidade, propôs uma vocalidade atravessada pela dissonância e pela artificialidade. Já o dadaísmo, em sua recusa ao sentido lógico e à racionalidade, instaurou uma voz fragmentada, caótica, feita de sons desconexos e associações livre. Ambos os movimentos contribuíram para deslocar a voz da função de mero veículo da linguagem para torná-la gesto sonoro, presença viva, corpo em vibração.
Nas artes cênicas, é vasto o campo de investigações sobre o corpo do ator, suas presenças dinâmicas e relações com o espaço e a cena. No entanto, quando se trata da voz, ainda que ela seja parte indissociável do corpo, observa-se uma lacuna significativa tanto nas pesquisas práticas quanto nos estudos teóricos. Frequentemente reduzida a um instrumento técnico de projeção ou à tarefa de transmitir o texto dramático, a voz tem sido historicamente tratada como um meio e não como acontecimento cênico em si. Mesmo nas abordagens que propõe uma expansão da fisicalidade do ator, a voz tende a ser subordinada ao gesto ou ao movimento.
Esta pesquisa nasce da necessidade de tensionar essa lógica, propondo um deslocamento: pensar a voz como corpo sonoro, com potência dramatúrgica própria, capaz de produzir sentido, presença e afetação a partir da escuta, do ruído, da paisagem e do espaço. trata-se, portanto, de uma tentativa de reinscrever a voz no campo das dramaturgias contemporâneas como gesto autônomo e criador.
Ao propor a ideia de voz como corpo sonoro, reconhece-se que a vocalidade não se limita ao aparelho fonador, mas se estende a todo o corpo em sua dimensão sensível, respiratória, muscular e afetiva. A voz é atravessada por respiração, vibração, tensão, intenção e movimento e, por isso, se configura como um reflexo do corpo, ao mesmo tempo em que o corpo também reverbera a voz. A vocalidade, assim, deixa de ser um canal apenas expressivo e passa a ser um campo performativo, onde o som, gesto e presença se entrelaçam numa dramaturgia própria.
Como afirma Zumthor (2007, p. 10-11), "intencionalmente, operei um desvio da própria língua para seu suporte vocal, tomando este último como realizador da linguagem e como fato físico-psíquico próprio, ultrapassando a função linguística".
Esta citação reforça o movimento central da pesquisa: deslocar o foco da voz entendida apenas como veículo de um código linguístico, isto é, como meio de transmitir palavras e significados para compreendê-la como uma presença viva e atuante. Nesse sentido, a voz pensada como um acontecimento vibrátil, uma ação sonora que se manifesta do corpo e afeta o outro e o espaço. Ela deixa de ser apenas um instrumento de fala para se tornar um gesto performativo que cria sentido, mesmo antes ou além das palavras.
Ao operar esse deslocamento, a pesquisa propõe escutar a voz do ator como gesto dramatúrgico que se inscreve no espaço urbano, afetado e atravessado pelas sonoridades da cidade. em um ambiente como Brasília, marcado por silêncios planejados, ruídos amplificados e geometrias acústicas singulares, a voz não apenas ocupa, mas dialoga com a paisagem sonora, sendo moldada por ela e, ao mesmo tempo, moldando a percepção do espaço. Assim, a vocalidade se torna também uma forma de cartografar o ambiente, produzindo presença cênica a partir da escuta, do ruído e do atravessamento sensível entre corpo, som e arquitetura.
A proposta se ancora na escuta como gesto criador, tomando o ruído, muitas vezes rejeitado ou ignorado, como matéria estética e dramatúrgica.
Independente de onde estamos, o que mais escutamos é ruído. Quando ignoramos o ruído, ele nos incomoda. Se nós o ouvimos, achamos fascinante. O som de um caminhão a cinquenta milhas por hora. Ruído fora das estações de rádio. Chuva. Nós queremos capturar e controlar estes sons, para usá-los não como efeitos sonoros, mas como instrumentos musicais (...) Com o filme fotográfico é agora possível controlar amplitude e frequência de muitos desses sons, e dar a eles ritmos muito além do que alcança a imaginação (Cage, 20011, p. 3)
Ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos e vulneráveis. Os olhos podem ser fechados, se quisermos; os ouvidos não, estão sempre abertos. os olhos podem focalizar e apontar nossa vontade, enquanto os ouvidos captam todos os sons do horizonte acústico, em todas as direções. (Schafer, 1992, p.55)
Inspirada por esses pensamentos, a pesquisa propõe uma escuta expandida do ambiente e da vocalidade, onde a cidade atua como instrumento e partitura, e a voz do ator se transforma em resposta sensível às camadas sonoras que atravessam o espaço urbano.
O foco da pesquisa está nos processos de criação cênico-performativos baseados na vocalidade do ator em diálogo com paisagens sonoras urbanas. A voz é abordada como gesto dramatúrgico, capaz de afetar, invocar e transitar entre o íntimo e o coletivo, o poético e o urbano, a escuta e seus espaços não convencionais, será o campo prático e simbólico dessa investigação.
A partir dessa perspectiva, surgem perguntas que guiam o percurso criativo e investigativo desta pesquisa:
- Como a escuta da cidade pode transformar o uso da voz no teatro contemporâneo?
- Como os lugares de performance em Brasília afetam a minha voz e modificam a cena?
- Como o corpo-vocal do ator pode se constituir como instrumento da paisagem sonora urbana?
- Em que momentos a voz do ator deixa de ser individual e se torna um gesto compartilhado com o espaço?
Metodologia/ Definição do contexto de produção
A presente pesquisa será desenvolvida por meio de uma abordagem qualitativa, prática e exploratória, em diálogo com referenciais teóricos e procedimentos metodológicos da pesquisa artística. A investigação parte da voz do ator como centro dramatúrgico e performático, em interlocução com a paisagem sonora da cidade de Brasília, adotando como eixos metodológicos o experimento cênico, a escuta urbana e a escrita reflexiva em tempo real, com o objetivo de expandir os modos de criação e recepção da voz em cena.
A metodologia será dividida em três etapas complementares, articuladas entre teoria, prática e escuta:
- Fase exploratória: Escuta urbana e experimentações vocais
Nesta etapa, serão realizados percursos sonoros pela cidade de Brasília, com o intuito de captar ruídos, vozes e paisagens sonoras específicas de diferentes regiões da capital. Esses sons servirão como matéria-prima dramatúrgicas para os experimentos performativos. Simultaneamente, serão conduzidas explorações vocais com base em improvisações, leitura de textos, leitura de texto, vocalizações não-verbais e investigação de estados corporais e vocais. A escuta da cidade será tratada como dispositivo dramatúrgico, em diálogo com práticas como a "paisagem sonora" (Schafer) e a escuta ativa (Cage).
2. Estudo teórico-bibliográfico: Voz, paisagem sonora e poesia experimental
Com base em uma revisão crítica de literatura, a pesquisa se apoiará em autores que discutem a voz como presença performática, as dramaturgias não textuais e sonoras, e a poesia sonora e a experimental. O estudo dialogará com teorias da performance, da escuta e da cidade, articulando as materialidades da voz com a paisagem urbana de Brasília.
3. Experimentos cênicos: A voz como dramaturgia em performance
Serão realizados três experimentos performáticos, todos concebidos e apresentados na cidade de Brasília. Um deles terá como base a dramaturgia clássica (um recorte do monólogo da tragédia Antígona), sendo explorado em sua dimensão vocal tradicional e em sua ressonância política e estética. Os outros dois serão experimentos contemporâneos, nos quais a voz será tratada como corpo sonoro em interação com os ruídos urbanos e com a montagem vocal como dispositivo dramatúrgico. Os experimentos serão registrados em áudio e vídeo, e analisados à luz das teorias discutidas, visando compreender como a voz, entre o grito e o sussurro, pode operar como escritura cênica.
A equipe será formada por um núcleo reduzido de amigos/colaboradores
- Intérprete e criador: Filipe Lacerda
- Direção colaborativa/vocal: Filipe Lacerda e ?
- Documentação Audiovisual: Filipe Lacerda e ?
- Consultoria técnica de som e iluminação: Filipe Lacerda e ?
Fontes/pontos de partida do projeto artístico
As fontes principais deste projeto se desdobram entre referências teóricas, práticas artísticas e vivências pessoais. Em diálogo com as artes da cena, a pesquisa se apoia em autoras e autores que pensaram a voz como matéria viva, poética e relacional, como Adriana Cavarero (Vozes Plurais), Antonin Artaud (O Teatro e seu Duplo), John Cage (Silêncio), Paul Zumthor (Performance, Recepção e Leitura), Roland Barthes (O grão da voz), Leda Martins, Jorge Dubatti e Jean-JAcques Lemêtre.
No campo da arte sonora e da escuta expandida, destacam-se os trabalhos de R.Murray Schafer, Chion, Salomé Voegelin, Peter Szendy e Brandon Labelle. Artistas como Laurie Anderson, Meredith Monk, Jaap Blonk e Arrigo Barnabé também compõem a base sensível desta proposta, ao lado de expêriencias de teatro físico e vocal desenvolvidas pelo Roy Hart Theatre, Grotowski e Odin Teatret.
A pesquisa também parte de escutas pessoais acumuladas ao longo da trajetória artística do proponente, que vem desenvolvendo há anos experimentações com a voz no teatro, tendo participado de uma companhia forte em trabalho vocal, como a Cia Club Noir.
- Movimentos Artísticos: Futurismo, Dadaísmo
- Adriana Cavarero - Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal
- Antonin Artaud - O Teatro e seu Duplo
- Ileana Diéguez Caballero. Cenário Liminares: teatralidades, performances e política
- John Cage - Silêncio
- Lucia Gayotto. Voz, partitura da Ação
- Marlene Fortuna. A performance da oralidade teatral
- Marvin Carlson. Performance: uma introdução crítica
- Murray Schafer - Ouvido pensante
- Paul Zumthor. Performance, recepção e leitura
- Paul Zumthor e Philadelpho Menezes. Poesia Sonora: Poéticas Experimentais da voz no século XX
- Platão - Crátilo
- RoseLee Goldberg. A arte da performance. Do Futurismo ao Presente
- Vera Terra. Acaso e aleatório na música: um estudo da indeterminação nas poéticas de Cage e Boulez
- Yoshi Oida. O ator invisível
- Yoko Ono
- Laurie Anderson
- Américo Rodrigues
- Enzo Menezes
- Marinetti
- Luigi Russolo
- Francesco Canguillo
- Giovanni Fontana
- Hugo Ball
- Raul Hausmann
Objetivo Geral
O objetivo principal deste projeto é investigar a voz do ator como gesto dramatúrgico em diálogo com as paisagens sonoras urbanas, por meio da criação de experimentos performativos situados na cidade de Brasília. A proposta parte da vocalidade como presença, compreendendo a voz não apenas como instrumento de fala ou veículo textual, mas acontecimento sensível, atravessado por escuta, ruído, respiro e espacialidade.
Objetivos Específicos
- Investigar como a escuta da cidade pode ser uma prática criativa que transforma a construção vocal do ator.
- Explorar os espaços urbanos de Brasília como dispositivos que reconfiguram corpo, voz e presença cênica.
- Criar partituras vocais performativas que explorem ruído, timbre, respiração, repetição e silêncio como elementos de significação dramatúrgica.
- Mapear experiências e artistas que investigam a vocalidade a partir de uma perspectiva expandida como John Cage, Yoko Ono, Meredith Monk, ... entre outros.
- Compreender a transição entre a voz individual para um gesto coletivo, compreendendo a vocalidade como acontecimento compartilhado com o espaço e com o outro.
- Produzir três experimentos performativos que atuem em diferentes camadas da vocalidade: o chão (Eixão), o corpo (Rodoviária), e o espaço (Passagem subterrânea)
- Refletir criticamente sobre processo criativo, registrando anotações, decisões e descobertas ao longo do percurso artístico.
- Desenvolver bases conceituais, metodológicas e práticas que sirvam como ponto de partida para a continuidade do estudo no doutorado, aprofundando a investigação da dramaturgia vocal em interseção com performance, som e cidade.
História pessoal por detrás do projeto/ Percurso Artístico-Pessoal
Nasci em Brasília fui criado em Taguatinga Norte e atualmente moro com meus pais em Águas Claras, cidade administrativa do Distrito Federal, filho de uma família nordestina do Ceará que se estabeleceu no cerrado durante a construção de Brasília. Cresci entre as frestas do concreto e os ecos dos interiores cearenses. Foi a voz que me atravessou primeiro: as histórias contadas pela minha vó, as histórias da seca, a vinda pra Brasília, os cantos populares, as feiras e os batuques da umbanda.
A escuta sempre foi meu modo de perceber o mundo, não apenas o que é dito, mas o que vibra por trás da palavra. Essa sensibilidade sonora me levou ao teatro. Fui para São Paulo estudar, passei por algumas instituições como a Escola de Artes Dramática (EAAD-ECA/USP), onde me formei em 2022. Ali, aprofundei o trabalho com a vocalidade, e compreendi que o corpo do ator começa na respiração. A voz, pra mim, é onde a presença se torna mais tênue e mais poderosa. Ela revela o invisível.
Minha trajetória como ator sempre foi atravessada pela busca de aprendizado, presença, escuta e intensidade. Ao longo da minha formação e prática teatral, encontrei na voz não apenas uma ferramenta expressiva, mas uma linguagem própria, capaz de afetar, invocar e desenhar presenças. Trabalhei durante dois anos uma Cia de Teatro, que tinha a voz como centro do trabalho cênico, onde aprendi o suficiente para querer estudar cada vez mais a voz do ator/performer.
Aos poucos, a voz foi se tornando minha principal característica cênica, e também minha maior obsessão criativa. Essa relação profunda com a vocalidade me levou a investigar seus desdobramentos para além do teatro de texto, mergulhando na performance, na música experimental, na poesia sonora e na escuta da cidade. O projeto nasce desse percurso pessoal artístico e da urgência de dar forma a uma pesquisa que atravessa corpo, som e palavra.
Apesar da centralidade da voz na atuação, ela ainda é frequentemente tratada apenas como veículo de emissão de texto, descolada de sua potência física, sonora e espacial. Essa abordagem reduz a voz a um instrumento técnico, apagando sua dimensão dramatúrgica e performativa. A pesquisa parte, portanto, da seguinte inquietação: como pensar a voz do ator para além do texto, como uma acontecimento que age no espaço, no tempo e no outro? Diante disso, propõe-se investigar a voz como construção dramatúrgica expandida, em diálogo com a cidade, com ruídos, com poesia sonora, buscando ativar sua potência como presença, escuta e gesto compartilhado. trata-se de deslocar o foco da voz como código para a voz como corpo que escreve cena.
De volta a Brasília, me reconheço na paisagem sonora dessa cidade que silencia e reverbera. ouço o vazio planejado, os ruídos que escapam. A cidade fala, mas é preciso afinar o ouvido para ouvi-la. Este projeto nasce desse desejo: escutar a cidade com o corpo e fazer da voz uma resposta sensível. Um gesto de invocação
Vejo neste momento uma oportunidade concreta de aprofundamento teórico e prático dentro da disciplina Dramaturgias Cênicas, ministrada pelo professor Dr. Marcus Mota, cujos atravessamentos conceituais têm ampliado meu entendimento sobre sons, e a própria voz como potência dramatúrgica e performativa. Esta pesquisa é, ao mesmo tempo, um desdobramento das minhas experiências anteriores e uma preparação para u mergulho ainda mais profundo nessa temática, que pretendo desenvolver futuramente em um projeto de doutorado.
Além disso, estou atualmente finalizando um mestrado intitulado Censura em Cena: Perspectivas de artistas sobre sobre as restrições à liberdade de expressão no teatro paulistano atual, uma pesquisa muito importante, mas fortemente ancorada em bases teóricas e históricas. Por isso, essa oportunidade prática representa não apenas um contraponto, mas também uma expansão da minha formação, pois inclui o retorno á cena como ator criador. É nessa encruzilhada entre teoria e prática, entre pesquisa e performance, que vejo a possibilidade de um trabalho mais completo, sensível e coerente com a minha trajetória.
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